11/05/2008

Ferreira Gullar

PELA RUA


Sem qualquer esperança
detenho-me diante de uma vitrina de bolsas
na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, domingo,
enquanto o crepúsculo se desata sobre o bairro.

Sem qualquer esperança
te espero.
Na multidão que vai e vem
entra e sai dos bares e cinemas
surge teu rosto e some
num vislumbre
e o coração dispara.
Te vejo no restaurante
na fila do cinema, de azul
diriges um automóvel, a pé
cruzas a rua
miragem
que finalmente se desintegra com a tarde acima dos edifícios
e se esvai nas nuvens.

A cidade é grande
tem quatro milhões de habitantes e tu és uma só.
Em algum lugar estás a esta hora, parada ou andando,
talvez na rua ao lado, talvez na praia
talvez converses num bar distante
ou no terraço desse edifício em frente,
talvez estejas vindo ao meu encontro, sem o saberes,
misturada às pessoas que vejo ao longo da Avenida.
Mas que esperança! Tenho
uma chance em quatro milhões.
Ah, se ao menos fosses mil
disseminada pela cidade.

A noite se ergue comercial
nas constelações da Avenida.
Sem qualquer esperança
continuo
e meu coração vai repetindo teu nome
abafado pelo barulho dos motores
solto ao fumo da gasolina queimada.

Dentro da noite veloz (1962-75)


OSWALD MORTO

enterraram ontem em São Paulo
um anjo antropófago
de asas de folha de bananeira
(mais um nome que se mistura à nossa vegetação tropical)
As escolas e as usinas paulistas
não se detiveram
para olhar o corpo do poeta que anunciara a civilização do ócio
Quanto mais pressa mais vagar

O lenço em que pela última vez
assoou o nariz
era uma bandeira nacional
NOTA:
Fez sol o dia inteiro em Ipanema
Oswald
de Andrade ajudou o crepúsculo
hoje domingo 24 de outubro de 1954

O vil metal (1954-60)


TRADUZIR-SE

Uma parte de mim
é todo mundo
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

Na vertigem do dia (1975-1980)

MEU PAI

meu pai foi
ao Rio se tratar de
um câncer (que
o mataria) mas
perdeu os óculos
na viagem

quando lhe levei
os óculos novos
comprados na Ótica
Fluminense ele
examinou o estojo com
o nome da loja dobrou
a nota de compra guardou-a
no bolso e falou:
quero ver
agora qual é o
sacana que vai dizer
que eu nunca estive
no Rio de Janeiro

UM INSTANTE


Aqui me tenho
como não me conheço
nem me quis

sem começo
nem fim

aqui me tenho
sem mim

nada lembro
nem sei

à luz presente
sou apenas um bicho
transparente

Muitas vozes (1999)


CANTIGA PARA NÃO MORRER

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

Dentro da noite veloz (1962-75)




POEMA BRASILEIRO


No Piauí de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade

No Piauí
de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade

No Piauí
de cada 100 crianças
que nascem
78 morrem
antes
de completar
8 anos de idade

antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade

Dentro da noite Veloz (1972 - 75)



Ferreira Gullar
é talvez, junto com Augusto de Campos, um dos grandes poetas brasileiros ainda vivos que, podemos dizer, influenciaram decisivamente a tradição deste gênero no Brasil. flertou com os poetas concretos, participou da fundação do movimento neo-concretista, afastou-se destes, sempre mantendo uma postura crítica independente. seu "Poema Sujo", escrito em 1975, respondendo às circunstâncias criadas pelo regime de excessão instalado pelos militares desde o golpe de 64, foi lido e relido clandestinamente em inúmeras reuniões por militantes, intelectuais e estudantes, naqueles difíceis anos de chumbo. seu trabalho sempre permaneceu aberto às experiências estéticas inovadoras. ainda em atividade, sua linguagem vai além do horizonte das palavras. o poeta, também crítico de arte, pinta quadros, faz colagens e desenhos. é o que ele chama de seu "lado B".

12 comentários:

  1. Estava faltando ele...
    Meu pai, acho de uma delicadeza... totalmente possível. Um carinho singelo à figura paterna, fragilizada pela doença declarada, mas na busca de uma bravata para ter com os amigos. A primeira vez que li,faz tempo, imaginei toda a cena. Adoro!

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  2. grande seleção de poemas do Ferreira Gullar!
    sobre o poema "Meu pai" concordo com o que disse Rita Mônica..

    Alexandre teu blog está o máximo mesmo!

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  3. Ju, Rita...
    Ferreira Gullar
    é sempre demais da conta!
    superlativo. tudo é bom.
    difícil errar na escolha.

    :o)

    o poema do Meu pai é uma pérola.
    prosaico. coloquial. terno.
    lindo né?!

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  4. "perdeu-se na confusão de tanta noite e tanto dia/perdeu-se na profusão das coisas acontecidas"
    (...)
    "quanta coisa se perde/nesta vida/ Como se perdeu o que eles falavam ali/mastigando/misturando feijão com farinha e nacos de carne assada/e diziam coisas tão reais como a toalha bordada"

    ampliou a seleção.. "Poema Sujo" e outros mais.. bacana, bacana, Alexandre.
    bonitas imagens do poeta!

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  5. Olá Alexandre...parabéns pelo seu blog,esta maravilhoso ....apresentar poesias deste sublime poeta contemporâneo Ferreira Gullar é alimentar a alma .Adoro !!!

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  6. um banquete esse post.
    Maravilha!
    beijo

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  7. Alê, também postei um poema do Gullar.
    Teu blog realmente está lindo.
    Beijo com carinho.

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  8. Cara, Gullar é tudo de bom!
    Descobri ele com o Poema Sujo, lá em 1977, depois descobri outros livros e inclusive um dos mais lúcidos críticos de arte desta pátria tupiniquim! Seu "discurso sobre a morte da arte" é um primor!

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  9. companheiro alexandre, escrevi sobre o "poema sujo" aqui:

    http://portalliteral.terra.com.br/Literal/calandra.nsf/0/E88E13F151C177C10325720400522E93?opendocument&pub=T&proj=Literal&sec=Especial

    espero q goste.
    abrações

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  10. Pri,
    preciso corresponder ao denodado esforço da minha mui estimada mestra ao iniciar-me na arte do blog.
    :)
    pra sempre grato...
    te adoro!

    Renato,
    foi + ou - nessa época que tomei contato com o Ferreira Gullar também. daí pra frente não parei + de aprender com ele. fui buscar sua produção anterior ao Poema Sujo. continua o mestre do poema e das idéias de sempre. estivemos com ele em sua casa no Rio (eu, Ricardo e Ronald). conhecemos a sua alegria e generosidade. é o cara!

    Jake,
    sirvamo-nos todos.
    comamos e bebamos ao fastio.
    vai pecado algum em nossa gula por Gullar.

    :o)

    Paulo,
    vou tirar o findi pra ler o teu artigo com calma e profundidade.

    anônimo amigo,
    seja sempre bem vindo!
    -

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  11. e alguém ainda duvida que as coisas lindas mais que lindas estejam nas mais simples?

    adorei todos. em tudo!

    beijão de quase final de semana, querido.

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