17/05/2008





tarde quente
penso em você
vestida de brisa



meio-dia e meia
fome pouca
saudade inteira



lua na janela
ela olha pra mim
eu olho pra ela



levou meu cheiro
deixou um beijo, despido
de despedida


alexandre brito

do inédito Cine ABC.




vento nenhum
parou para ouvir
o silêncio da noite




lua alta
céu claro
o som da folha caindo




lua clara
a nuvem some
atrás da araucária




enquanto os carros repousam no estacionamento
a lua cheia de fevereiro cruza o céu
sobre a única araucária



alexandre brito

haicais do inédito Cine ABC.

11/05/2008






Augusto de Campos
com protótipo do holograma "poema-bomba"




morituro 1994



tour 1994



poema-bomba (holograma) 1987



pós-tudo 1984



pó de cosmos 1984



sol de maiakovski 1982



o quasar 1975



pulsar 1975



tudo está 1974



código 1973




cidadecitycité 1963

tensão (1956)

clique sobre as imagens

Augusto Luís Browne de Campos
poeta, tradutor, ensaísta, crítico de literatura e música, em 1951 publicou o seu primeiro livro de poemas, O rei menos o reino. Em 1952, com seu irmão Haroldo de Campos e Décio Pignatari, dando início ao movimento internacional da Poesia Concreta no Brasil, lançou a revista literária Noigandres, origem do Grupo Noigandres. em 1955, no segundo número da revista, publicou uma série de poemas em cores, Poetamenos, considerados os primeiros exemplos consistentes de poesia concreta no Brasil. o verso e a sintaxe convencional eram abandonados e as palavras rearranjadas em estruturas gráfico-espaciais, algumas vezes impressas em até seis cores diferentes, sob inspiração da Klangbarbenmelodie (melodia de timbres) de Webern. em 1956 participou da organização da Primeira Exposição Nacional de Arte Concreta (Artes Plásticas e Poesia), no Museu de Arte Moderna de São Paulo. sua obra veio a ser incluída, posteriormente, em muitas mostras, bem como em antologias internacionais como as históricas publicações Concrete Poetry: an International Anthology, organizada por Stephen Bann (London, 1967), Concrete Poetry: a World View, por Mary Ellen Solt (University of Bloomington, Indiana, 1968), Anthology of Concrete Poetry, por Emmet Williams (NY, 1968). a maioria dos seus poemas acha-se reunida em Viva Vaia, 1979, Despoesia, 1994 e Não, 2003. outras obras importantes são Poemóbiles (1974) e Caixa Preta (1975), coleções de poemas-objetos em colaboração com o artista plástico e designer Julio Plaza. seu livro, Não poemas (2003), recebeu o prêmio de Livro do Ano, concedido pela Fundação Biblioteca Nacional.

Ferreira Gullar

PELA RUA


Sem qualquer esperança
detenho-me diante de uma vitrina de bolsas
na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, domingo,
enquanto o crepúsculo se desata sobre o bairro.

Sem qualquer esperança
te espero.
Na multidão que vai e vem
entra e sai dos bares e cinemas
surge teu rosto e some
num vislumbre
e o coração dispara.
Te vejo no restaurante
na fila do cinema, de azul
diriges um automóvel, a pé
cruzas a rua
miragem
que finalmente se desintegra com a tarde acima dos edifícios
e se esvai nas nuvens.

A cidade é grande
tem quatro milhões de habitantes e tu és uma só.
Em algum lugar estás a esta hora, parada ou andando,
talvez na rua ao lado, talvez na praia
talvez converses num bar distante
ou no terraço desse edifício em frente,
talvez estejas vindo ao meu encontro, sem o saberes,
misturada às pessoas que vejo ao longo da Avenida.
Mas que esperança! Tenho
uma chance em quatro milhões.
Ah, se ao menos fosses mil
disseminada pela cidade.

A noite se ergue comercial
nas constelações da Avenida.
Sem qualquer esperança
continuo
e meu coração vai repetindo teu nome
abafado pelo barulho dos motores
solto ao fumo da gasolina queimada.

Dentro da noite veloz (1962-75)


OSWALD MORTO

enterraram ontem em São Paulo
um anjo antropófago
de asas de folha de bananeira
(mais um nome que se mistura à nossa vegetação tropical)
As escolas e as usinas paulistas
não se detiveram
para olhar o corpo do poeta que anunciara a civilização do ócio
Quanto mais pressa mais vagar

O lenço em que pela última vez
assoou o nariz
era uma bandeira nacional
NOTA:
Fez sol o dia inteiro em Ipanema
Oswald
de Andrade ajudou o crepúsculo
hoje domingo 24 de outubro de 1954

O vil metal (1954-60)


TRADUZIR-SE

Uma parte de mim
é todo mundo
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

Na vertigem do dia (1975-1980)

MEU PAI

meu pai foi
ao Rio se tratar de
um câncer (que
o mataria) mas
perdeu os óculos
na viagem

quando lhe levei
os óculos novos
comprados na Ótica
Fluminense ele
examinou o estojo com
o nome da loja dobrou
a nota de compra guardou-a
no bolso e falou:
quero ver
agora qual é o
sacana que vai dizer
que eu nunca estive
no Rio de Janeiro

UM INSTANTE


Aqui me tenho
como não me conheço
nem me quis

sem começo
nem fim

aqui me tenho
sem mim

nada lembro
nem sei

à luz presente
sou apenas um bicho
transparente

Muitas vozes (1999)


CANTIGA PARA NÃO MORRER

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

Dentro da noite veloz (1962-75)




POEMA BRASILEIRO


No Piauí de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade

No Piauí
de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade

No Piauí
de cada 100 crianças
que nascem
78 morrem
antes
de completar
8 anos de idade

antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade

Dentro da noite Veloz (1972 - 75)



Ferreira Gullar
é talvez, junto com Augusto de Campos, um dos grandes poetas brasileiros ainda vivos que, podemos dizer, influenciaram decisivamente a tradição deste gênero no Brasil. flertou com os poetas concretos, participou da fundação do movimento neo-concretista, afastou-se destes, sempre mantendo uma postura crítica independente. seu "Poema Sujo", escrito em 1975, respondendo às circunstâncias criadas pelo regime de excessão instalado pelos militares desde o golpe de 64, foi lido e relido clandestinamente em inúmeras reuniões por militantes, intelectuais e estudantes, naqueles difíceis anos de chumbo. seu trabalho sempre permaneceu aberto às experiências estéticas inovadoras. ainda em atividade, sua linguagem vai além do horizonte das palavras. o poeta, também crítico de arte, pinta quadros, faz colagens e desenhos. é o que ele chama de seu "lado B".







clique sobre os poemas


alexandre brito
3 poemas visuais do livro Zeros - coleção Petit-Poa /1991.

07/05/2008





no dia seguinte
decifrando os sulcos da caneta
na página em branco
ao resgatar o poema posto fora
encontrei a minha arte




alexandre brito
do inédito Cine ABC

01/05/2008



O LIVRO

permaneceu mudo durante anos
suas orelhas ouviram tudo o que fora dito naquele recinto

as palavras
tipograficamente impressas no papel amarelado
nunca lidas nunca folheadas
jaziam inertes

surpreendentemente
numa manhã gelada de inverno
precisamente às onze horas e trinta minutos do dia
treze de julho de mil novecentos e cinqüenta e nove
uma segunda-feira, o inesperado
algo admirável acontece

como formigas diminutas no interior das páginas
letras, sílabas, vocábulos, movimentam-se
parágrafos, diálogos, orações, figuras de linguagem, interrogações
tudo se reacomoda internamente para contar uma nova história

sem emitir qualquer juízo
em quatrocentos e trinta e cinco páginas
um relato fidedigno de tudo quanto presenciara ao longo de décadas

a verdade pode afinal vir à tona
as entranhas de três gerações de uma família centenária
expostas à luz e aos olhos dos interventores

mas, inadvertidamente
por um capricho do destino
sua espessura é exata para sustentar como calço
o pé quebrado de uma estante no quarto dos serviçais

seu oportuno e conveniente uso é imediato
o pé da página,
apóia-se, agora, no roda-pé da parede



alexandre brito
do inédito Cine ABC

Hilda Hilst na Casa do Sol


SE EU DISSER

Se eu disser que vi um pássaro
Sobre o teu sexo, deverias crer?
E se não for verdade, em nada mudará o Universo.
Se eu disser que o desejo é Eternidade
Porque o instante arde interminável
Deverias crer? E se não for verdade
Tantos o disseram que talvez possa ser.
No desejo nos vem sofomanias, adornos
Impudência, pejo. E agora digo que há um pássaro
Voando sobre o Tejo. Por que não posso
Pontilhar de inocência e poesia
Ossos, sangue, carne, o agora
E tudo isso em nós que se fará disforme?

DO DESEJO

E por que haverias de querer minha alma

Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele outro. E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e de acertos.
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.

***

Colada à tua boca a minha desordem.
O meu vasto querer.
O incompossível se fazendo ordem.
Colada à tua boca, mas descomedida
Árdua
Construtor de ilusões examino-te sôfrega
Como se fosses morrer colado à minha boca.
Como se fosse nascer
E tu fosses o dia magnânimo
Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.


ALCOÓLICAS I

É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d’água, bebida. A Vida é líquida.


CANTARES DO SEM NOME

Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua do estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.

Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.

Que este amor só me veja de partida.


Hilda Hilst (1930 / 2004)
é considerada uma voz importante da língua portuguesa no século 20. dona de uma linguagem inovadora, produziu mais de quarenta títulos entre poesia, teatro e ficção, ganhando inúmeros prêmios literários.