31/01/2008



o Deus da palavra
é um Deus silencioso

cavalga páginas em branco
lacera estruturas neuronais
se entranha na trama celulósica do papel
como um vírus sub-atômico

(da asa ao nada, língua à vida
anima a coisa inanimada)

no sal da sua saliva
pulsa aceso o caos de um céu imaginário
onde nasce a flor axial do sentido

o Deus da palavra
leva o poeta carinhosamente pela mão
até a beira do abismo


alexandre brito
do livro O fundo do ar e outros poemas / Ameopoema Editora

www.ameopoema.com.br

29/01/2008



não quero mais de um poeta
que a sua letra
palavra presa na página
borboleta
nem quero saber da sua vida
da verdade que nunca foi dita
mesmo por ele
que tudo que viveu duvida
não revirem a sua cova
o seu arquivo
é no seu livro que o poeta está enterrado
vivo


Ricardo Silvestrin
do livro
Palavra Mágica / Massao Ohno Editor


outra fera alegórica



a vaca cor de barro
eu vinha de longe em longe
quando ela me viu
achei no seu olho de boi
um ameaço

havia uma bifurcação
por onde enfiar a esperança
e o temor
ao pé de mim a cada passo
suas bostas

antes deste empate
eu ouvia os sapos
cada coaxar era um buraco
esponjoso de onde um som
de água opaca



Ronald Augusto
do livro no assoalho duro / éblis editora
retrato de Ronald Augusto por Rosa Marques / acrílica sobre papel

26/01/2008



No mar


No mar
escondo segredos
dentro de conchas
que fazem ecos
nos meus ouvidos.

Ecos que escuto em
dias de silêncio e
mormaço.
A cabeça pesa:
para um lado
para o outro.

Até que canso e
descanso.
Escuto o silêncio
do mar
(enquanto as conchas dormem).


Tânia Cardoso de Cardoso
poetas bissextos, expressão cunhada por Manuel Bandeira, são poetas que
caracterizam-se por uma produção episódica. os poemas se lhes acontecem
de raro em raro. no caso, à Tânia, nem podemos aplicar esta definição.
é poeta de "um poema só". quiçá se transforme em poeta bissexta, ou,
ainda
melhor, contumaz.

24/01/2008



entre o breu e o brilho
armou o cavalete.
pintava fora do quadro
com os dedos em pleno ar
onde o espaço era amplo
e a tela mais macia.
o que ouvia punha ali.
naquele pedaço
de céu de chão de sonho
o pio do passarinho
a voz do vendedor de loteria
o apito do afiador de facas
a correria para o recreio.
os gritos no pátio do colégio
a mãe chamando para o almoço
e o gosto do bife de fígado da avó
poria depois, bem depois
quando tudo estivesse esquecido
num momento em falso
em alguma noite sem estrelas
sem esperança, sem salvação.

pintou e pintou e pintou

até lembrar
definitivamente
que antes de tudo
toda arte existe pra nada.



alexandre brito
de O fundo do ar e outros poemas /
Ameopoema Editora
www.ameopoema.com.br


23/01/2008

Três haicais



lua cheia
nua e cheia
plena

...


lua cheia
uivos soam
chamando fêmeas

...


estrela cadente
lua calhiente, nua
all dente

alexandre brito
do inédito Cine ABC.

21/01/2008



manuscrito com poema/praga de Alice, sabiamente preservado
por Alonso Alvarez, em noite curitibana memorável de 1986.



praga para o Alexandre


que o breve
seja de um longo pensar

que o longo
seja de um curto sentir

que tudo seja leve
de tal forma
que o tempo nunca leve


Alice Ruiz
praga- poema de apresentação
ao livro Visagens - Alexandre Brito / Arte Pau Brasil




sempre corri atrás de mim
como uma criança
atrás de um balão levado pelo vento

eu era o vento e não sabia


alexandre brito
de Zeros / Coleção Petit-Poa




escrever
seguir o curso
entre a surpresa e o susto

ler as entrelinhas
como o vento nos arbustos


alexandre brito

de O Fundo do ar e outros poemas / Ameopoema Editora
www.ameopoema.com.br

17/01/2008


UMA VELA À NOSSA SENHORA DA BOA MORTE

a liberdade bastarda se infiltra onde
o céu encontra a terra
denuncia intensa atividade literária

essa idéia no papel derramada assim feito gelatina
nem parece uma idéia parece mais um
estorvo feito de cimento e osso

o sol miúdo sem bolor entesourado e mudo
desonera de rapapés e obrigações um aglomerado de
letras na biblioteca universal dos manuscritos

toda tradição se renova pela libertinagem
a boa nova vem pelo esquecimento intencional das regras
um livro que não descenda de nenhum outro é uma indecência

de sorte que o pecado original da invenção
mais que matar o padre e ir ao cinema
é declarar-se órfã pretender-se sem pai sem par

numa semana ensolarada de 22
um bebê de proveta aproveita a tarde à beira mar
no calçadão desenhado por Niemeyer


alexandre brito

do inédito
Cine ABC

13/01/2008


no dia seguinte

decifrando os sulcos da caneta

na página em branco

ao resgatar o poema posto fora

encontrei a minha arte


alexandre brito
do inédito c
ine ABC