01/05/2008


Hilda Hilst na Casa do Sol


SE EU DISSER

Se eu disser que vi um pássaro
Sobre o teu sexo, deverias crer?
E se não for verdade, em nada mudará o Universo.
Se eu disser que o desejo é Eternidade
Porque o instante arde interminável
Deverias crer? E se não for verdade
Tantos o disseram que talvez possa ser.
No desejo nos vem sofomanias, adornos
Impudência, pejo. E agora digo que há um pássaro
Voando sobre o Tejo. Por que não posso
Pontilhar de inocência e poesia
Ossos, sangue, carne, o agora
E tudo isso em nós que se fará disforme?

DO DESEJO

E por que haverias de querer minha alma

Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele outro. E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e de acertos.
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.

***

Colada à tua boca a minha desordem.
O meu vasto querer.
O incompossível se fazendo ordem.
Colada à tua boca, mas descomedida
Árdua
Construtor de ilusões examino-te sôfrega
Como se fosses morrer colado à minha boca.
Como se fosse nascer
E tu fosses o dia magnânimo
Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.


ALCOÓLICAS I

É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d’água, bebida. A Vida é líquida.


CANTARES DO SEM NOME

Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua do estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.

Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.

Que este amor só me veja de partida.


Hilda Hilst (1930 / 2004)
é considerada uma voz importante da língua portuguesa no século 20. dona de uma linguagem inovadora, produziu mais de quarenta títulos entre poesia, teatro e ficção, ganhando inúmeros prêmios literários.

5 comentários:

  1. Bah, adorei conhecer esses poemas. Não conhecia essa autora ainda. Mas vou pesquisar mais sobre o trabalho. Os poemas são de uma natureza profunda^^
    :*

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  2. Alê!

    Seu blog tá demais! Tudo de muito bom gosto ;)
    As vezes entro aqui pra alimentar a alma.

    Abraço apertadinho

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  3. Hilda Hilst é demais mesmo!
    ótima escolha para o blog!
    beijo

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  4. Hilda Hilst é fenomenal!
    Adoro a voz da poesia dela!

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  5. Suzy Si Ju tita...
    uma alegria
    a visita qualificada de vcs.

    Hilda Hilst
    é poeta com densidade além da conta.
    linguagem própria, apurada, ímpar.

    como Hilda Hilst só Hilda Hilst.

    sorriso e beijos.

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