29/04/2008

Paulo Hecker Filho


O POEMA

O universo te atravessa.
O universo, nada menos que o universo,
com seus lagos, montanhas, desertos,
espaços intermináveis, os astros.
Te atravessa.
Nada sobra de ti nem dele,
a não ser, talvez, o poema.



FELICIDADE

Isto que eu estou sentindo
pode-se chamar felicidade.
Só que a própria felicidade é
temor, susto, apreensão.
Não dá pra dar felicidade,
mas eu gostaria de lhes dar como uma flor.
Deus não me puna os pecados,
neles já vem o castigo.
Pecados de egoísmo, indecisão,
deixar morrer de fome e comer,
amar demais e não saber amar.
Eu sinto nos ombros a culpa do mundo
mas sozinho sucumbo.
Eu choro no cinema.



PÊNDULA

tinha cinco anos
e soube o que era a noite
por este relógio de pêndulo
que foi de meus pais e conservo.
Só eu acordado nesta casa
e ele bateu onze horas,
cada uma mais noturna.
Fui dormir e não pude.
Às onze e meia
tornou a dar sinal de vida,
de uma vida no escuro,
e esperei as doze punhaladas.
Foram doze.
Ele na sala, eu na cama,
dentro da noite.

Há anos o silenciei.
Merecia o descanso
depois de marcar tantas horas.
Nem eu tinha de seguir escutando,
preferia esquecer, esquecer.
No entanto, calado, aturde
com o silêncio em que tudo acaba,
ele que contou as horas do meu tempo,
horas do dia e da noite,
cumpridor, certo, sem perdão.



O PRÓXIMO MINUTO

Cada dia
tem uma manhã inteira,
uma tarde ainda mais longa,
uma noite que se diria sem fim.
Cada dia
de uma série ininterrupta
de dias, semanas, meses, anos.
E já não está fácil
o próximo minuto!


TRANSITÓRIO

E pensar que o autor deste verso não existe mais.
Pensar nos trabalhos dos seus dias,
que às vezes amou, outras se viu ferido,
quis viver e quis morrer, como qualquer um,
e mesmo assim teve alento para deixar que viesse até ele esse verso,
que o salvou na hora e nos salva agora.


SER SIMPLES

Admirar o admirável
sem surpresa.
Amar e não amar
reconhecendo-o.
Sentir frio,
sentir calor,
sentir com os outros.
Conhecer
a última canção.
Discutir o filme.
Falar ao desconhecido
como se não fosse,
à criança como a um adulto,
ao adulto como a uma criança.
Ser simples.
Ser simples
para chegar ao real.
Ser simples
para ser poeta.


Paulo Hecker Filho (1926 - 2005)
está entre os grandes da literatura brasileira. poeta, tradutor, crítico, intelectual (bibliófilo) de refinada erudição, é na poesia que alcança o ápice da realização artística. sua obra está aí para ser lida, relida, descoberta.

5 comentários:

  1. Obrigado, Xandi!
    O Paulo Hecke Fº. é tudo de bom!

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  2. tens razão: a obra de Paulo Hecker Filho está aí para ser lida, relida, descoberta.. versos de uma grandiosidade particular. poesia que chega e que fica e a cada leitura se torna mais viva, pulsa! bela escolha Alexandre. este poeta cujo trabalho conheci através de ti merece assento aqui no blog.
    beijo

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  3. e que sobre o poema. sempre.

    lindos demais. adorei! :))

    beijos de sorriso.
    ou sorriso de beijos.

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  4. podem crer gente...
    o Paulo era de uma generosidade
    entusiasmante! crítica sim, mas
    estimulante, desejosa, carinhosa.
    uma pessoa, um intelectual,
    um artista ímpar. um poeta maduro.
    um mestre. um amigo.
    sua ausência
    será pra sempre sentida.
    à nossa geração cabe resgatá-lo,
    para colocar autor e obra
    no seu merecido lugar junto aos
    grandes escritores brasileiros.

    palmas para o Paulo!!!

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  5. Paulo é poeta da fina flor da poesia.Obrigada pelo carinho de suas desenhadas palavras.Bjão ! PV

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