Ode de ódio à fotografia
Dez mil mortes às portas da câmara escura
a que tens por caverna, tu
que deusa não és e a mitos
não te prestas, arte das frestas
Dez mil mortes à rua entre as casas
e os pontos de luz,
comedora de signos
Câmara ardente de imagens vistas,
muito menos que sonoras,
não vales sequer uma palavra
Dez mil mortes almejo à câmara tua
Linguagem crua és, ausência pura ou
marca de presenças que se foram já
quando as detiveste,
suspensas no nada de si mesmas
Menos que ideograma: fotograma
Menos que ideografia: fotografia
És foto, não grafas
Tudo o que és:
resto de sonho anterior a uma língua morta
descrita por mestre indiano, pedaço de sphota ou
fantasma de sombras chinesas,
mero instantâneo da idéia
do sopro mediano,
mas distante do Tao
O Tao não é aquilo que és,
quase-pictrograma
sem caráter
Mas te necessito
para o sorriso dela junto ao meu
em frente ao lago os lotus em flor
naquele verão ou qualquer viagem
mesmo à beira da cama
Para a vida pequena que levo
entre rastros de sagrados,
para o casamento com ela,
te necessito
sim, musa fria
Dez mil horas sem sono se engolem
em tua vigília, te necessito
porque és leviana, sonsa
e soas sem som no vazio
E não me levas a alma,
estúpida: clicas-me
e te devoro
Quinquilharia da moda,
és tu ou minha língua
Só uma sobreviva,
ó dejeto de subvidas
Digo: abaixo tua cara
desalmada de jornal,
cova rala do raro
Tua verdade toda
encontra-se atrás de ti,
jaz na janela de trás,
no olho que investiga
e estima teu caminho,
segredo de James Stewart,
mistério de Hitchcock
E te necessito,
néscia: te felicito
Ricardo Portugal
Ricardo Portugal é poeta e diplomata, e acaba de retornar de 5 anos vivendo e trabalhando na China. Formado em Letras pela UFRGS, lançou, entre outros, o livro DePassagens, pela Editora AMEOPOEMA, e foi co-organizador e editor do livro bilingüe “Antologia Poética de Mário Quintana”, lançado na China em parceria pelo Consulado-Geral do Brasil em Xangai e a Editora da PUCRS.