ouça o discurso inflamado de Caetano Veloso no III Festival de Música Popular Brasileira da Record de 1969 aqui.
28/08/2009
ouça o discurso inflamado de Caetano Veloso no III Festival de Música Popular Brasileira da Record de 1969 aqui.
SAINDO DE PAUMANOK
(fragmento)
11.
Uma vez no Alabama, enquanto eu dava
o meu passeio matinal,
vi pousada uma fêmea de pardal
em seu ninho entre os galhos
chocando seus filhotes.
Eu vi também o passarinho-macho
e parei a escutá-lo
ao alcance da mão
inflando o peito e gorjeando em júbilo.
E estando ali parado, me ocorreu
que o canto dele
não era só para o que estava ali,
nem para a parceira dele
nem mesmo para ele só,
nem para tudo que os ecos mandavam
de volta
- mas muito além, sutil e clandestina,
era mensagem transmitida e oculta herança
para os que estavam acabando de nascer.
ENQUANTO EU LIA O LIVRO
enquanto eu lia o livro,
a famosa biografia:
- então é isso (eu me perguntava)
o que o autor chama
a vida de um homem?
e é assim que alguém,
quando morto e ausente eu estiver,
irá escrever sobre a minha vida?
(Como se realmente alguém realmente soubesse
de minha vida um nada,
quando até eu, eumesmo, tantas vezes
sinto que pouco sei ou nada sei
da verdadeira vida que é a minha:
somente uns poucos traços
apagados, uns dados espalhados
e uns desvios, que eu busco
para uso próprio, marcando o caminho
daqui afora.)
Walt Whitman
do livro Folhas das Folhas da Relva / Brasiliense
Tradução Geir Campos
Toda revolução digna deste nome produz seu grande poeta.
"Antena da Raça", o poeta capta, nos tempos de comoção social,
a tremenda energia vital liberada pelas grandes transformações
coletivas, em seu momento agudo, revolucionário ou insurrecional.
Assim, se Maiakovski é o poeta da Revolução Russa, não é exagero
dizer que Walt Whitman (1819-1892) é o poeta da Revolução Americana,
ocorrida uma geração antes (1776) antes do seu nascimento.
O fato (ou o fado) de as revoluções apodrecerem, por mais altos que
sejam seus ideais, pouco afeta a poesia dos que a exaltaram, por elas
exaltados, em seu momento puro, em sua hora plena, em seu meio-dia.
Dai-nos, hoje, Senhor, a utopia de cada dia.
Whitman, o primeiro beatnik, vive da longa vida que só uma grande
poesia (ou uma grande revolução) irradia.
do prefácio de Paulo Leminski
a liberdade bastarda se infiltra onde
o céu encontra a terra
denuncia intensa atividade literária
essa idéia no papel derramada assim feito gelatina
nem parece uma idéia parece mais um
estorvo feito de cimento e osso
o sol miúdo sem bolor entesourado e mudo
desonera de rapapés e obrigações um aglomerado de
letras na biblioteca universal dos manuscritos
toda tradição se renova pela libertinagem
a boa nova vem pelo esquecimento intencional das regras
um livro que não descenda de nenhum outro é uma indecência
de sorte que o pecado original da invenção
mais que matar o padre e ir ao cinema
é declarar-se órfã pretender-se sem pai sem par
numa semana ensolarada de 22
um bebê de proveta aproveita a tarde à beira mar
no calçadão desenhado por Niemeyer
alexandre brito
do inédito Cine ABC
PELA RUA
Sem qualquer esperança
detenho-me diante de uma vitrina de bolsas
na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, domingo,
enquanto o crepúsculo se desata sobre o bairro.
Sem qualquer esperança
te espero.
Na multidão que vai e vem
entra e sai dos bares e cinemas
surge teu rosto e some
num vislumbre
e o coração dispara.
Te vejo no restaurante
na fila do cinema, de azul
diriges um automóvel, a pé
cruzas a rua
miragem
que finalmente se desintegra com a tarde acima dos edifícios
e se esvai nas nuvens.
A cidade é grande
tem quatro milhões de habitantes e tu és uma só.
Em algum lugar estás a esta hora, parada ou andando,
talvez na rua ao lado, talvez na praia
talvez converses num bar distante
ou no terraço desse edifício em frente,
talvez estejas vindo ao meu encontro, sem o saberes,
misturada às pessoas que vejo ao longo da Avenida.
Mas que esperança! Tenho
uma chance em quatro milhões.
Ah, se ao menos fosses mil
disseminada pela cidade.
A noite se ergue comercial
nas constelações da Avenida.
Sem qualquer esperança
continuo
e meu coração vai repetindo teu nome
abafado pelo barulho dos motores
solto ao fumo da gasolina queimada.
Dentro da noite veloz (1962-75)
OSWALD MORTO
um anjo antropófago
de asas de folha de bananeira
(mais um nome que se mistura à nossa vegetação tropical)
As escolas e as usinas paulistas
não se detiveram
para olhar o corpo do poeta que anunciara a civilização do ócio
Quanto mais pressa mais vagar
era uma bandeira nacional
Fez sol o dia inteiro
Oswald
hoje domingo 24 de outubro de 1954
TRADUZIR-SE
é todo mundo
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
pesa, pondera:
outra parte
delira.
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?
MEU PAI
ao Rio se tratar de
um câncer (que
o mataria) mas
perdeu os óculos
na viagem
os óculos novos
comprados na Ótica
Fluminense ele
examinou o estojo com
o nome da loja dobrou
a nota de compra guardou-a
no bolso e falou:
quero ver
agora qual é o
sacana que vai dizer
que eu nunca estive
no Rio de Janeiro
UM INSTANTE
como não me conheço
nem me quis
nem fim
aqui me tenho
sem mim
nada lembro
nem sei
à luz presente
sou apenas um bicho
transparente
moça branca como a neve,
me leve.
Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.
Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.
E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.
Dentro da noite veloz (1962-75)
POEMA BRASILEIRO
No Piauí de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade
No Piauí
de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade
No Piauí
de cada 100 crianças
que nascem
78 morrem
antes
de completar
8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
Dentro da noite Veloz (1972 - 75)
é talvez, junto com Augusto de Campos, um dos grandes poetas brasileiros ainda vivos que, podemos dizer, influenciaram decisivamente a tradição deste gênero no Brasil. flertou com os poetas concretos, participou da fundação do movimento neo-concretista, afastou-se destes, sempre mantendo uma postura crítica independente. seu "Poema Sujo", escrito em 1975, respondendo às circunstâncias criadas pelo regime de excessão instalado pelos militares desde o golpe de 64, foi lido e relido clandestinamente em inúmeras reuniões por militantes, intelectuais e estudantes, naqueles difíceis anos de chumbo. seu trabalho sempre permaneceu aberto às experiências estéticas inovadoras. ainda em atividade, sua linguagem vai além do horizonte das palavras. o poeta, também crítico de arte, pinta quadros, faz colagens e desenhos. é o que ele chama de seu "lado B".
por Alonso Alvarez, em noite curitibana memorável de 1986.
que o breve
seja de um longo pensar
que o longo
seja de um curto sentir
que tudo seja leve
de tal forma
que o tempo nunca leve
Alice Ruiz
praga- poema de apresentação
ao livro Visagens - Alexandre Brito / Arte Pau Brasil
27/08/2009
ESTRELA DA MANHÃ
Eu quero a estrela da manhã
Onde está a estrela da manhã?
Meus amigos meus inimigos
Procurem a estrela da manhã
Ela desapareceu ia nua
Desapareceu com quem?
Procurem por toda parte
Digam que sou um homem sem orgulho
Um homem que aceita tudo
Que me importa?
Eu quero a estrela da manhã
Três dias e três noites
Fui assassino e suicida
Ladrão, pulha, falsário
Virgem mal-sexuada
Atribuladora dos aflitos
Girafa de duas cabeças
Pecai por todos pecai com todos
Pecai com os malandros
Pecai com os sargentos
Pecai com os fuzileiros navais
Pecai de todas as maneiras
Com os gregos e com os troianos
Com o padre e com o sacristão
Com o leproso de Pouso Alto
Depois comigo
Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas comerei terra
[e direi coisas de uma ternura tão simples
Que tu desfalecerás
Procurem por toda a parte
Pura ou degradada até a última baixeza
Eu quero a estrela da manhã.
Manuel Bandeira
do livro Estrela da Manhã.
A CÓPULA
Depois de lhe beijar meticulosamente
o cu, que é uma pimenta, a boceta, que é um doce,
o moço exibe à moça a bagagem que trouxe:
culhões e membro, um membro enorme e turgescente.
Ela toma-o na boca e morde-o. Incontinenti,
não pode ele conter-se, e, de um jacto, esporrou-se.
Não desarmou porém. Antes, mais rijo, alteou-se
E fodeu-a. Ela geme, ela peida, ela sente
Que vai morrer: - "Eu morro! queres que eu morra?!"
Grita para o rapaz que aceso como um diabo,
arde em cio e tesão na amorosa gangorra
E titilando-a nos mamilos e no rabo
(que depois irá ter sua ração de porra),
lhe enfia cona adentro a o mangalho até o cabo.
Manuel Bandeira
do inédito Cine ABC
Fez uma breve e meticulosa retrospectiva mental. Agora finalmente poderia deitar a cabeça no travesseiro e dormir. O corpo do psiquiatra jamais seria encontrado.
alexandre brito
do inédito sem nome.
o mal-ajambrado pretende fazer boa figura
presunçoso nos modos e no vestir
não sente constrangimento algum de seus atos sensuráveis
dá um trato legal no visú
e sai por aí esbanjando malandrage
idade não desmerece
preto quase preto retinto
terno branco de bric
camisa de cetim vermelho, chapéu
branco também, usadinho em bom estado
de bric também
e já vai ele de bengala,
corrente dourada, anéis nos dedos
elegância manemolente
lhe cairia bem um dente de ouro no sorriso
mas não tem pro gasto
vai baixar lá no catimbó da Mãe serena
antiga na religião
renega Umbanda, Candomblé, Batuque
Catimbó é tradição
Mãe preta gosta de batidinha de coco
pinga com butiá, ou purinha mesmo
Mãe serena é Zé Pelintra
tem festa no Congá.
do inédito Cine ABC
do livro Zeros / Coleção Petit-Poa