13/07/2009



As três cortesãs e a poesia chinesa na Dinastia Tang
por Ricardo Portugal e Tan Xiao

A história da China anterior à fundação da República (1912) é descrita pela sucessão de dinastias nacionais e regionais, cada uma delas marcada por uma identidade cultural. A “idade de ouro” da cultura clássica chinesa foi alcançada na Dinastia Tang (618-905 d.C.). Foi principalmente essa dinastia chinesa, caracterizada pelo cosmopolitismo e por uma diplomacia ativa, que serviu de matriz para o desenvolvimento posterior, por adaptação e refinamento, da cultura japonesa.

A poesia da Dinastia Tang é considerada o auge da poesia clássica chinesa. Essa produção poética foi depositária de uma já longa tradição literária e linguística, a qual remonta às primeiras grandes antologias de cantos antigos: o Shi Jing (Livro da poesia), compilação da Dinastia Zhou (1045-256 a.C.), e o Chu-ci (Cantos do país de Chu), que aparece no período dos Reinos Combatentes (em torno do século iv a.C.).

A prolificidade e, ao mesmo tempo, alta qualidade dessa poesia é notável. A popular antologia Poemas completos da Dinastia Tang, compilada posteriormente, no século xvii (Dinastia Qing), por ordem imperial, contém aproximadamente 50 mil poemas, escritos por 2200 autores. Terão havido mais nomes importantes, e muitos textos se perderam.

Entre esses poetas, há “apenas” 190 mulheres. Naquele período histórico de intensa vida urbana culta, a situação da mulher era bastante mais favorável que em outros momentos da história da China. A elas era permitida uma inserção social mais livre e igualitária. Ainda que excluídas do sistema dos exames imperiais que selecionavam a elite dominante, muitas mulheres possuíam educação e conhecimento literário.

Mesmo assim, as moças “de família” não eram encorajadas a escrever poesia e muito poucas recebiam o treinamento literário e artístico requerido de um intelectual na tradição confuciana. Meninas de famílias de ricos oficiais do Estado, a classe dominante, eram, por vezes, aceitas nas escolas de seu clã juntamente com os meninos, ou tinham tutores particulares. Mas geralmente as mulheres eram educadas o suficiente para exercerem funções do lar, sendo útil a leitura de livros sobre a correta conduta feminina, que ensinavam as virtudes da passividade, da modéstia, da moderação e da obediência aos futuros maridos e aos parentes do sexo masculino.

Nessa sociedade, floresceu uma casta de cortesãs cultas, recrutada entre meninas vendidas por causa da pobreza, oriundas de famílias de funcionários caídos em desgraça, ou ainda sequestradas. Essas mulheres eram amiúde mais livres que esposas e concubinas em suas vidas sociais. Algumas delas mantinham vínculo servil a um bordel. Também ocorria de famílias ricas manterem em suas propriedades grupos de mulheres com cultura literária, as quais trabalhavam como dançarinas e musicistas, chamadas de “cortesãs da casa”.

Havia também as “cortesãs oficiais”, assim chamadas porque atuavam em festividades palacianas ou porque eram ligadas aos mais caros bordéis da capital, sendo requisitadas por funcionários eminentes. Prósperas casas de cortesãs eram mantidas próximas ao local dos exames imperiais, e quando os resultados eram anunciados, realizavam comemorações. Essas cortesãs eram chamadas a entreter banquetes no palácio imperial e em residências abastadas.

As mais talentosas eram versadas nas artes clássicas (música, poesia, caligrafia, pintura) e eram tratadas como iguais em discussões e concursos de poesia. Muitas eram resgatadas por homens ricos e poderosos e se tornavam suas concubinas. Esse foi o caso da poeta Xue Tao, famosa por sua beleza e seu talento. Entre seus amigos e admiradores, estavam alguns dos mais considerados poetas de seu tempo, como Bai Juyi e Yuan Zhen.

Também na Dinastia Tang, as sacerdotisas taoístas eram mulheres de vida autônoma, que gozavam de grande liberdade em suas relações sociais. Ao contrário das monjas budistas, sua opção monástica não incluía a abstenção das relações sexuais. As sacerdotisas taoístas transitavam pela casta das cortesãs, podendo viajar livremente, mudar-se e associar-se a seu bel-prazer. Muitas, especialmente as mais abastadas, tinham amantes e participavam ativamente da rica vida cultural e literária da época. Algumas mantinham concorridas festas e saraus literários em suas residências.

As poetas Yu Xuanji e Li Ye estavam entre as mais influentes sacerdotisas taoístas de sua época. Yu Xuanji realizou muitas viagens, e vários de seus poemas são escritos em trânsito. Entre seus amantes e admiradores, estava o renomado poeta Wen Tingyun.

Li Ye era uma poeta bastante respeitada em sua época. Era também famosa pelas posições políticas muito críticas e pela personalidade forte e impositiva. Atribui-se a inimizades políticas o fato de sua biografia ser pouco conhecida e não muitos de seus poemas terem permanecido. A extraordinária delicadeza e sensorialidade de sua poesia, rica em sinestesias, mescla-se com escolhas vocabulares agressivas, até violentas, e mesmo com recurso a alguma vulgaridade.

A seguir, apresentamos algumas traduções que compõem o livro que estamos preparando, bilíngue, de poetas mulheres da Dinastia Tang. As traduções são feitas diretamente do texto em chinês (confrontadas com traduções em inglês), o qual é reproduzido abaixo.


Xue Tao

薛涛

CANÇÃO CONTEMPLANDO A PRIMAVERA

(iii)

Ao sopro do dia envelhecem as flores

Longe o momento, tão longa a espera

Nenhum laço une amor e amante

trança o vazio meu nó-do-amor

(iv)

Insuportáveis os galhos repletos,

flores demais! Saudades às pencas

Plena manhã, o espelho reflete

à primavera as lágrimas, o vento

春望词四首

(三)

风花日将老,

佳期犹渺渺。

不结同心人,

空结同心草。

(四)

那堪花满枝,

翻作两相思。

玉箸垂朝镜,

春风知不知。


Li Ye

李冶

DOENTE JUNTO AO LAGO – SAUDAÇÃO A LU YU

Sobre a geada a lua, à tua ida

e hoje retornas na amarga neblina

Eis-me deitada, enferma, aqui me encontras

À fala acorre a lágrima, escorre

Vens, e do vinho de Tao me ofereces

e te devolvo um poema de Xie

Encher a cara contigo outra vez

mais do que isso, que posso querer?

湖上卧病喜陆鸿渐至 昔去繁霜月, 今来苦雾时。 相逢仍卧病, 欲语泪先垂。 强劝陶家酒, 还吟谢客诗。 偶然成一醉, 此外更何之。


CANTO DE SAUDADE

Profundo, dizem do mar, suas águas

tão mais ao fundo chega a saudade

Mar sem margens, larga a sua praia

e mais longe alcança meu sentimento

Tomo o alaúde, subo as escadas

só no terraço, com a lua cheia

e esta canção que diz: estou triste

toco e arrebento as cordas, as tripas

相思怨 人道海水深, 不抵相思半。 海水尚有涯, 相思渺无畔。 携琴上高楼, 楼虚月华满。 弹著相思曲,

弦肠一时断。


ADEUS EM UMA NOITE DE LUA

Separar em silêncio, e a lua esplende

sem rumor nem fala. O sentimento

irradia o adeus que falta, e à lua

cintilam nuvens, águas e cidades

明月夜留别

离人无语月无声,

明月有光人有情。

别后相思人似月,

云间水上到层城。


Yu Xuanji

鱼玄机

A UMA GAROTA DO BAIRRO

A manga esconde em gaze o dia, tímida

E é primavera, há que maquiar-se

Dar com tesouros sem preço: isso é fácil

Achar um homem amante, tão difícil

No travesseiro as lágrimas se ocultam

e em meio às flores cala o coração

mas se posso paquerar um Song Yu

por que lamentaria um Wang Chang?

赠邻女

羞日遮罗袖,

愁春懒起妆。

易求无价宝,

难得有心郎。

枕上潜垂泪,

花间暗断肠。

自能窥宋玉,

何必恨王昌。


PARA OS SALGUEIROS JUNTO AO RIO

Um halo em jade às margens devolutas

nuvens procuram pavilhões distantes

As sombras deitam-se no rio de outono

as flores descem sobre os pescadores

Raízes densas são abrigo aos peixes

e enlaçam os ramos barcos visitantes

Suspira a noite à chuva geme ao vento

vertem tristeza os sonhos revolutos

赋得江边柳

翠色连荒岸,

烟姿入远楼。

影铺秋水面,

花落钓人头。

根老藏鱼窟,

枝低系客舟。

萧萧风雨夜,

惊梦复添愁。


Ricardo Portugal é poeta e diplomata, graduado em Letras pela UFRGS. Viveu cinco anos em Pequim e em Xangai. Publicou: DePassagens (Ameop, 2004), Arte do risco (SMCPA, 1992), entre outros. Organizou a edição bilíngue chinês-português Antologia poética de Mário Quintana (PUCRS, 2007), primeiro livro de poeta brasileiro traduzido para o chinês, com o apoio do Consulado Geral do Brasil em Xangai.

Tan Xiao é graduada em Letras, com ênfase em língua inglesa e ensino das línguas inglesa e chinesa pela Universidade Zhong Nan, Changsha, Hunan, República Popular da China. Foi intérprete e tradutora da Embaixada do Brasil em Pequim. Atualmente, é funcionária do escritório brasiliense da empresa Huawei.

04/07/2009



Dia 04/07 (sábado) 18h30
Qual é a do Erasmo de Roterdã
uma conversa entre três leitores do escritor e teólogo holandês, sobre
a escrita e as idéias de Erasmo de Roterdã no livro "O elogio da loucura".


Ricardo Silvestrin
escritor e músico

Carlo Pianta
músico, compositor e mestrando em literatura brasileira

Alexandre Brito
poeta e compositor

"Qual é?" acontece mensalmente, aos sábados, na livraria Palavraria.

rua Vasco da Gama, 165 - tel. 32684260
grátis


01/07/2009

poesia brasileira contemporanea - contemporary Brazilian poetry

ilustração da capa: xilo de Renato de Mattos Motta



" Luuua, luuuua, luuuua,
Lá no auuu, lá no au auuuu,

Lá no alto brilhando!
Luuua, luuuua, luuuua!
Aluuuu... aluuuu... aluminando

Ora se não é o primo lobo
Nos dando concerto noturno
Mas cala essa boca logo
Antes que voe um coturno!

Ora veja, primo cachorro
Como está gordo e cevado
Enquanto eu de fome morro
Que boa vida tem levado!

Realmente não me queixo
Porque nada me faz falta
Tenho comida – até deixo
Que também nem cabe tanta

Na mata, primo, nem queira
Saber como anda a vida
Se anda a semana inteira
E não se acha comida!

Aqui tenho até uma casa

Ao lado da do meu patrão
Não por pouco fico prosa
Isto sim que é um vidão!

Na mata, o céu é o abrigo
Por teto somente folhas
Cobertas é aperta-se a um amigo
Se chove, por certo te molhas

Isso que tens não é vida
Isto é só necessidade
Devias deixar esta lida
Com os homens fazer sociedade

Mas que posso fazer

Pra conquistar tal amizade
Se o homem só de me ver
Já dá tiros sem piedade?

Também, o que queres?

Pudera! Basta alguém se aproximar
Já fazes cara de fera
E começas a rosnar! "


Renato de Mattos Motta é múltiplo. poeta, artista-plástico, fotógrafo, tradutor, publicitário. publicou Pau de Poemas (com ilustrações próprias em xilogravura), Salamanca (adaptação para quadrinhos de J. S. Lopes Neto), Fotopoemas e a Coleção Fogo do Verbo (caixas de fósforos com poemas). é responsável pela concepção gráfica e conceito editorial da Coleção Poesia Viva. o trecho postado é do primeiro volume do seu Os Cantos da Carochinha, transposição livre, em versos, das Estórias da Carochinha (que integra a Coleção Poesia Viva), lançada recentemente pela Editora Porto Poesia (portopoesia2@gmail.com).
poesia brasileira contemporanea - contemporary Brazilian poetry



O museu

por que um museu?
perguntou a musa ao dicionário
porque é necessário respondeu

tem que ter
um lugar um lugar um lugar
onde ver cabe dentro do olhar

que mancha vira rinoceronte

janela porta proutro horizonte
hoje nunca esquece de anteontem
e mármore flutua mais leve que o ar

um lugar sem pressa
que os azulejos contem uma história
e as escadas encantadas
levem ao mundo dos contos de fada

onde a emoção exata de um tigre
salte da xícara para a íris
e uma idéia, na sua forma alada mais rara
surpreenda o visitante e encontre um coração

um lugar que...
quando todos vão embora
e tudo fica completamente a sós
o vento que vem de lugar nenhum
sopra pelos corredores

as esculturas ganham vida
os personagens descem dos quadros
seguem todos para o grande salão
e lá reunidos, se divertem, dançam
fazem piadas sobre nós


alexandre brito
ilustração: Eduardo Vieira da Cunha