tarde quente
penso em você
vestida de brisa
meio-dia e meia
fome pouca
saudade inteira
lua na janela
ela olha pra mim
eu olho pra ela
levou meu cheiro
deixou um beijo, despido
de despedida
alexandre brito
do inédito Cine ABC.
Augusto Luís Browne de Campos
poeta, tradutor, ensaísta, crítico de literatura e música, em 1951 publicou o seu primeiro livro de poemas, O rei menos o reino. Em 1952, com seu irmão Haroldo de Campos e Décio Pignatari, dando início ao movimento internacional da Poesia Concreta no Brasil, lançou a revista literária Noigandres, origem do Grupo Noigandres. em 1955, no segundo número da revista, publicou uma série de poemas em cores, Poetamenos, considerados os primeiros exemplos consistentes de poesia concreta no Brasil. o verso e a sintaxe convencional eram abandonados e as palavras rearranjadas em estruturas gráfico-espaciais, algumas vezes impressas em até seis cores diferentes, sob inspiração da Klangbarbenmelodie (melodia de timbres) de Webern. em 1956 participou da organização da Primeira Exposição Nacional de Arte Concreta (Artes Plásticas e Poesia), no Museu de Arte Moderna de São Paulo. sua obra veio a ser incluída, posteriormente, em muitas mostras, bem como em antologias internacionais como as históricas publicações Concrete Poetry: an International Anthology, organizada por Stephen Bann (London, 1967), Concrete Poetry: a World View, por Mary Ellen Solt (University of Bloomington, Indiana, 1968), Anthology of Concrete Poetry, por Emmet Williams (NY, 1968). a maioria dos seus poemas acha-se reunida
PELA RUA
Sem qualquer esperança
detenho-me diante de uma vitrina de bolsas
na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, domingo,
enquanto o crepúsculo se desata sobre o bairro.
Sem qualquer esperança
te espero.
Na multidão que vai e vem
entra e sai dos bares e cinemas
surge teu rosto e some
num vislumbre
e o coração dispara.
Te vejo no restaurante
na fila do cinema, de azul
diriges um automóvel, a pé
cruzas a rua
miragem
que finalmente se desintegra com a tarde acima dos edifícios
e se esvai nas nuvens.
A cidade é grande
tem quatro milhões de habitantes e tu és uma só.
Em algum lugar estás a esta hora, parada ou andando,
talvez na rua ao lado, talvez na praia
talvez converses num bar distante
ou no terraço desse edifício em frente,
talvez estejas vindo ao meu encontro, sem o saberes,
misturada às pessoas que vejo ao longo da Avenida.
Mas que esperança! Tenho
uma chance em quatro milhões.
Ah, se ao menos fosses mil
disseminada pela cidade.
A noite se ergue comercial
nas constelações da Avenida.
Sem qualquer esperança
continuo
e meu coração vai repetindo teu nome
abafado pelo barulho dos motores
solto ao fumo da gasolina queimada.
Dentro da noite veloz (1962-75)
OSWALD MORTO
um anjo antropófago
de asas de folha de bananeira
(mais um nome que se mistura à nossa vegetação tropical)
As escolas e as usinas paulistas
não se detiveram
para olhar o corpo do poeta que anunciara a civilização do ócio
Quanto mais pressa mais vagar
era uma bandeira nacional
Fez sol o dia inteiro
Oswald
hoje domingo 24 de outubro de 1954
TRADUZIR-SE
é todo mundo
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
pesa, pondera:
outra parte
delira.
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?
MEU PAI
ao Rio se tratar de
um câncer (que
o mataria) mas
perdeu os óculos
na viagem
os óculos novos
comprados na Ótica
Fluminense ele
examinou o estojo com
o nome da loja dobrou
a nota de compra guardou-a
no bolso e falou:
quero ver
agora qual é o
sacana que vai dizer
que eu nunca estive
no Rio de Janeiro
UM INSTANTE
como não me conheço
nem me quis
nem fim
aqui me tenho
sem mim
nada lembro
nem sei
à luz presente
sou apenas um bicho
transparente
moça branca como a neve,
me leve.
Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.
Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.
E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.
Dentro da noite veloz (1962-75)
POEMA BRASILEIRO
No Piauí de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade
No Piauí
de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade
No Piauí
de cada 100 crianças
que nascem
78 morrem
antes
de completar
8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
Dentro da noite Veloz (1972 - 75)
O LIVRO
permaneceu mudo durante anos
suas orelhas ouviram tudo o que fora dito naquele recinto
as palavras
tipograficamente impressas no papel amarelado
nunca lidas nunca folheadas
jaziam inertes
surpreendentemente
numa manhã gelada de inverno
precisamente às onze horas e trinta minutos do dia
treze de julho de mil novecentos e cinqüenta e nove
uma segunda-feira, o inesperado
algo admirável acontece
como formigas diminutas no interior das páginas
letras, sílabas, vocábulos, movimentam-se
parágrafos, diálogos, orações, figuras de linguagem, interrogações
tudo se reacomoda internamente para contar uma nova história
sem emitir qualquer juízo
em quatrocentos e trinta e cinco páginas
um relato fidedigno de tudo quanto presenciara ao longo de décadas
a verdade pode afinal vir à tona
as entranhas de três gerações de uma família centenária
expostas à luz e aos olhos dos interventores
por um capricho do destino
sua espessura é exata para sustentar como calço
o pé quebrado de uma estante no quarto dos serviçais
seu oportuno e conveniente uso é imediato
o pé da página, apóia-se, agora, no roda-pé da parede
DO DESEJO
E por que haverias de querer minha alma
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele outro. E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e de acertos.
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.
***
Colada à tua boca a minha desordem.É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d’água, bebida. A Vida é líquida.
CANTARES DO SEM NOME
Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua do estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.
Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.
Que este amor só me veja de partida.
Hilda Hilst (1930 / 2004)
é considerada uma voz importante da língua portuguesa no século 20. dona de uma linguagem inovadora, produziu mais de quarenta títulos entre poesia, teatro e ficção, ganhando inúmeros prêmios literários.
num panorama que vai do extremo de conteúdo da letra do rap ao vazio de texto da música eletrônica, os poETs apostam no caminho do meio. no Cd Música Legal com Letra Bacana, apresentam um trabalho de letra e melodia como poucos. não se deixam aprisionar por gêneros musicais. vão do surf rock “Salva-vidas” ao maxixe “O Brasil não é”, passando pela delicada “A formiga” com extrema competência e sem papo-cabeça. mas com cérebro, sim.
Projeto Abdução